Eu não estava bem, nada bem. Percebi isto porque o ar me
faltava e várias pessoas de branco corriam de um lado para outro, aflitas. Umas
me espetaram o braço. Senti ser injeção, pois doeu como a picada de uma agulha.
Apaguei.
Quando voltei a mim estava em outro lugar. Parecia um
palácio, de tão grande. No saguão, muita gente conversando baixo, quase ninguém
ria, apenas sorrisos contidos. E andavam de um lado para outro como se
estivessem de férias, sem nada para fazer.
Olhei em torno e percebi um velho, muito velho, numa espécie
de trono. Parecia cochilar. Ao seu lado, sentado num banquinho um homem muito moreno,
quase pardo. Devia ter por volta de quarenta e poucos anos. Assustei-me com o
adorno que trazia na cabeça – parecia uma coroa de planta espinhosa. “Que diabo
é isso?”, pensei intrigada. “Eita, conheço a figura. Não, não pode ser, estou
maluca”, disse de mim para mim. Mas o fato é que o homem pardo, de cabelo
crespo e comprido, me lembrou os velhos santinhos distribuídos nas igrejas
quando eu era criança. Com uma diferença: nada de olhos azuis e cabelos
dourados, parecia, mais, um árabe.
Nisso, o velho me chamou. Voz fraca, rouca, mas autoritária:
̶ Chega aqui!
̶ O que é? Quem são
vocês? Que lugar é este?
̶ Você está no céu.
Sou o rei dos reis. Este aqui é meu filho que...
̶ Pode parar! ̶ Eu o
interrompi. ̶ Que diabos estou fazendo aqui? Quero ir
embora. Agora!
̶ Hei, me respeita! Você
morreu, não percebe? Aqui é o céu. E todos querem vir pra cá. Aqui há paz
eterna.
̶ Não quero paz, quero
muvuca, gente, badalação... Isto aqui é o fim da picada.
̶ Você vai encontrar
seus parentes queridos, não fica contente? E também tem meu filho que sofreu
muito para tirar os pecados do mundo, não é, filhão?
̶ Ora, eu nem era
nascida quando você mandou matar seu filho! Que pai degenerado! E não quero
saber daquela velharia da minha família que já nem lembro da cara. Quero cair
fora, tá ouvindo?
O velho ficou sem saber o que dizer. Matutava alguma coisa
enquanto tirava a dentadura que o incomodava há séculos, e a limpava na manga
da túnica encardida. Ao seu lado, o filho coçava a cabeça e ajeitava a coroa de
planta espinhosa. Com certeza não tinha mais nada o que fazer pela eternidade
afora. Eles pareciam sem saber o que
dizer diante de uma mulher tão brava, e indignada por estar ali. Não estavam
acostumados com isto.
̶ Quero descer,
voltar pra terra. Prefiro enfrentar pivetes e trânsito caótico do que ficar
aqui nessa pasmaceira.
̶ Não pode. Morreu,
tá morta ̶ irritou-se o velho. ̶
Melhor é se conformar. E aqui só tem gente boa, virgens, música suave,
anjos, santos... Hoje mesmo vai ter um recital de harpa. O que mais você quer?
̶ Quero praia, sol,
beijo na boca, e detesto harpa, tá ouvindo? E essas carolas são um tormento. E
pra que me servem anjos se é tudo capado? Me poupe!
Nessa hora o filho, com aquele eterno olhar de resignação,
tentou me entender e perguntou pra onde eu queria ir. E falou que a Magdalena
podia ser minha amiga e me levar pra passear nos jardins. Tinha muita flor,
passarinho e lagos cheios de peixes dourados.
̶ Magdalena, aquela
puta arrependida? Tá doido? E não quero saber de passear em jardim nem em ficar
olhando laguinho com peixe dourado. Prefiro o mar bravo, as ondas, o calor de
40⁰, a rua cheia de gente.
Pai e filho se entreolharam pasmos. Não sabiam o que fazer,
nem dizer, porque uma coisa era certa: para o mundo eu não poderia voltar. Resolveram,
então, chamar o Mentor Real, um pombo que sabe tudo. Ele era o conselheiro para
assuntos corriqueiros e para os difíceis também. Afinal, eles nunca haviam dado
de cara com uma pessoa que detestasse o céu, muito pelo contrário, e talvez o
Mentor soubesse o que fazer.
Voando meio de banda, já com as penas carcomidas pelo tempo,
e cega de um olho, chegou a ave e pousou no braço do velho. Cochicharam por
algum tempo numa língua estranhíssima
̶ um arrulho intercortado por ais
e uis ̶
aliás, o mesmo dialeto que os Carismáticos usam em cerimônias dignas de
hospício. Me olhavam de soslaio, imaginando que eu devia ter algum distúrbio
emocional grave.
Ele voou para o meu lado, tonto como se tivesse de porre, e
pousou perto. Pensei “Vou dar um teco nesse pombo sem GPS”, mas me contive,
temendo represálias. Afinal, dizem que a ira do Todo Poderoso é terrível, e não
sou besta de enfrentar isto. Vai que o velho resolve fazer chover 100 dias e
100 noites? Eu ficaria na maior deprê, com certeza. E, ainda mais, presa
naquele lugar.
̶ E então, resolveram
o quê? Aqui não fico, já disse ̶ berrei.
̶ Vamos chamar minha
mãe. Como ela também é mulher, vocês podem ficar amigas ̶
sussurrou o filho, sem grande entusiasmo.
Aliás, o sujeito parecia um
deprimido crônico: não ria, falava baixo como se estivesse com medo do pai.
Também, ninguém merece ser mandado para a morte pelo próprio genitor. Fica com
um trauma que não há psicanalista que resolva. Mas eu não tinha nada a ver com
isto e não me meto em assuntos de família.
̶ Não, mesmo! Não
quero saber de nenhuma mulher que espalha aos quatro ventos que seu filho foi
feito por um pombo e depois diz que a criança é de outro. Isto é bizarrice da
grossa. Nem em manicômio tem uma coisa dessas!
̶ retruquei. ̶ Já
sei! Quero ir para o inferno. Assim vocês se livram de mim e eu, de vocês. Lá
vou encontrar pessoas normais, que gostam de comer, transar, dançar... Só
espero que não tenha baile funk. É isso!
Me mandem para o inferno!
Os três se entreolharam espantados. E irritados com minha
audácia. Afinal, eles não queriam perder uma alma para seu arqui-inimigo, o
capeta ̶ seria péssimo pra sua imagem. Não concordaram.
Com voz melosa o velho tentou me bajular:
̶ Não podemos fazer
isso. Você sempre foi uma pessoa do bem, ainda que seja muito atrevida. Pra lá
só vai quem não presta.
Me enfureci, desesperada. E pulei no pombo cego de um olho,
tentando esganá-lo. O filho, até então inexpressivo, gritou e começou a chorar. O velho ficou vermelho,
quase enfartando, e o pombo se debatia soltando penas pra tudo quanto é lado.
Nesse momento o chão do céu se abriu e por ele surgiu a cabeça morena do
capeta. Ele ria a bandeiras despregadas
̶ o céu havia se transformado num
pandemônio: as carolas corriam como baratas, de um lado para outro, se benzendo
e rezando alto; os anjos, eunucos de nascença e por isto, bastante efeminados,
batiam as asas, espalhando purpurina e dando gritinhos, enlouquecidos porque
nunca haviam presenciado uma coisa dessas; padres e freiras se ajoelharam, aos
prantos.
̶ Eita mulher
danada! ̶ gritou o capeta, gargalhando sem parar. ̶
Vamos nessa, eu te levo, isto aqui é insuportável! ̶
Emendou.
Eu já estava pronta pra descer pelo buraco aberto no chão e
ir para onde as coisas acontecem. Mas aí o velho se levantou do trono, apoiado
no braço do filho, e falou com raiva:
̶ Tá bom. Mas com
esse aí você não vai! Volta pra terra e que se dane, sua insubordinada! O que
você acha, filho? Melhor isso do que perder pro chifrudo.
̶ Você é quem manda,
papi ̶
respondeu um amedrontado Emanuel. Ele não era besta de contrariar o
velho. Uma vez já fora parar na cruz; duas, seria demais pra qualquer santo.
O pombo cego de um olho, mas narcisista como ele só, pois
era considerado a eminência parda do reino, aproximou-se de mim e me deu uma
bicada no braço. A dor me fez desmaiar.
Acordei na minha cama. O sol estrava pela janela e o
ventilador rodava a todo vapor. Me arrumei rapidinho e me mandei pra praia.
Nunca o mar me pareceu tão maravilhoso, mas um machucado no braço ardeu pra
caramba em contato com a água salgada. Olhei o ferimento. Parecia feito por
algo que fura. “Esquisito isto”, pensei, distraída.