Não sou "politicamente correta", OK?

Da Política ao Prato-feito, vou vivendo cada dia como se fosse o último. E gostando do que faço.

Nem só de Sexo vive a Humanidade, mas de toda a Risada que consiga dar. E de toda a Reflexão que consiga provocar.



sábado, 1 de julho de 2017

BATE-BOCA NO CÉU






Eu não estava bem, nada bem. Percebi isto porque o ar me faltava e várias pessoas de branco corriam de um lado para outro, aflitas. Umas me espetaram o braço. Senti ser injeção, pois doeu como a picada de uma agulha. Apaguei.

Quando voltei a mim estava em outro lugar. Parecia um palácio, de tão grande. No saguão, muita gente conversando baixo, quase ninguém ria, apenas sorrisos contidos. E andavam de um lado para outro como se estivessem de férias, sem nada para fazer.

Olhei em torno e percebi um velho, muito velho, numa espécie de trono. Parecia cochilar. Ao seu lado, sentado num banquinho um homem muito moreno, quase pardo. Devia ter por volta de quarenta e poucos anos. Assustei-me com o adorno que trazia na cabeça – parecia uma coroa de planta espinhosa. “Que diabo é isso?”, pensei intrigada. “Eita, conheço a figura. Não, não pode ser, estou maluca”, disse de mim para mim. Mas o fato é que o homem pardo, de cabelo crespo e comprido, me lembrou os velhos santinhos distribuídos nas igrejas quando eu era criança. Com uma diferença: nada de olhos azuis e cabelos dourados, parecia, mais, um árabe.
Nisso, o velho me chamou. Voz fraca, rouca, mas autoritária:

̶  Chega aqui!

̶  O que é? Quem são vocês? Que lugar é este?

̶  Você está no céu. Sou o rei dos reis. Este aqui é meu filho que...

̶  Pode parar!  ̶  Eu o interrompi.  ̶  Que diabos estou fazendo aqui? Quero ir embora. Agora!

̶  Hei, me respeita! Você morreu, não percebe? Aqui é o céu. E todos querem vir pra cá. Aqui há paz eterna.

̶  Não quero paz, quero muvuca, gente, badalação... Isto aqui é o fim da picada.

̶  Você vai encontrar seus parentes queridos, não fica contente? E também tem meu filho que sofreu muito para tirar os pecados do mundo, não é, filhão?

̶  Ora, eu nem era nascida quando você mandou matar seu filho! Que pai degenerado! E não quero saber daquela velharia da minha família que já nem lembro da cara. Quero cair fora, tá ouvindo?

O velho ficou sem saber o que dizer. Matutava alguma coisa enquanto tirava a dentadura que o incomodava há séculos, e a limpava na manga da túnica encardida. Ao seu lado, o filho coçava a cabeça e ajeitava a coroa de planta espinhosa. Com certeza não tinha mais nada o que fazer pela eternidade afora.  Eles pareciam sem saber o que dizer diante de uma mulher tão brava, e indignada por estar ali. Não estavam acostumados com isto.

̶  Quero descer, voltar pra terra. Prefiro enfrentar pivetes e trânsito caótico do que ficar aqui nessa pasmaceira.

̶  Não pode. Morreu, tá morta  ̶  irritou-se o velho.  ̶  Melhor é se conformar. E aqui só tem gente boa, virgens, música suave, anjos, santos... Hoje mesmo vai ter um recital de harpa. O que mais você quer?

̶   Quero praia, sol, beijo na boca, e detesto harpa, tá ouvindo? E essas carolas são um tormento. E pra que me servem anjos se é tudo capado? Me poupe!

Nessa hora o filho, com aquele eterno olhar de resignação, tentou me entender e perguntou pra onde eu queria ir. E falou que a Magdalena podia ser minha amiga e me levar pra passear nos jardins. Tinha muita flor, passarinho e lagos cheios de peixes dourados.

̶  Magdalena, aquela puta arrependida? Tá doido? E não quero saber de passear em jardim nem em ficar olhando laguinho com peixe dourado. Prefiro o mar bravo, as ondas, o calor de 40⁰, a rua cheia de gente.

Pai e filho se entreolharam pasmos. Não sabiam o que fazer, nem dizer, porque uma coisa era certa: para o mundo eu não poderia voltar. Resolveram, então, chamar o Mentor Real, um pombo que sabe tudo. Ele era o conselheiro para assuntos corriqueiros e para os difíceis também. Afinal, eles nunca haviam dado de cara com uma pessoa que detestasse o céu, muito pelo contrário, e talvez o Mentor soubesse o que fazer.

Voando meio de banda, já com as penas carcomidas pelo tempo, e cega de um olho, chegou a ave e pousou no braço do velho. Cochicharam por algum tempo numa língua estranhíssima  ̶  um arrulho intercortado por ais e uis  ̶  aliás, o mesmo dialeto que os Carismáticos usam em cerimônias dignas de hospício. Me olhavam de soslaio, imaginando que eu devia ter algum distúrbio emocional grave.

Ele voou para o meu lado, tonto como se tivesse de porre, e pousou perto. Pensei “Vou dar um teco nesse pombo sem GPS”, mas me contive, temendo represálias. Afinal, dizem que a ira do Todo Poderoso é terrível, e não sou besta de enfrentar isto. Vai que o velho resolve fazer chover 100 dias e 100 noites? Eu ficaria na maior deprê, com certeza. E, ainda mais, presa naquele lugar.

̶  E então, resolveram o quê? Aqui não fico, já disse  ̶  berrei.

̶  Vamos chamar minha mãe. Como ela também é mulher, vocês podem ficar amigas  ̶  sussurrou o filho, sem grande entusiasmo.

 Aliás, o sujeito parecia um deprimido crônico: não ria, falava baixo como se estivesse com medo do pai. Também, ninguém merece ser mandado para a morte pelo próprio genitor. Fica com um trauma que não há psicanalista que resolva. Mas eu não tinha nada a ver com isto e não me meto em assuntos de família.

̶  Não, mesmo! Não quero saber de nenhuma mulher que espalha aos quatro ventos que seu filho foi feito por um pombo e depois diz que a criança é de outro. Isto é bizarrice da grossa. Nem em manicômio tem uma coisa dessas!  ̶  retruquei.  ̶   Já sei! Quero ir para o inferno. Assim vocês se livram de mim e eu, de vocês. Lá vou encontrar pessoas normais, que gostam de comer, transar, dançar... Só espero que não tenha baile funk.  É isso! Me mandem para o inferno!

Os três se entreolharam espantados. E irritados com minha audácia. Afinal, eles não queriam perder uma alma para seu arqui-inimigo, o capeta  ̶  seria péssimo pra sua imagem. Não concordaram. Com voz melosa o velho tentou me bajular:

̶  Não podemos fazer isso. Você sempre foi uma pessoa do bem, ainda que seja muito atrevida. Pra lá só vai quem não presta.

Me enfureci, desesperada. E pulei no pombo cego de um olho, tentando esganá-lo. O filho, até então inexpressivo,  gritou e começou a chorar. O velho ficou vermelho, quase enfartando, e o pombo se debatia soltando penas pra tudo quanto é lado. Nesse momento o chão do céu se abriu e por ele surgiu a cabeça morena do capeta. Ele ria a bandeiras despregadas  ̶  o céu havia se transformado num pandemônio: as carolas corriam como baratas, de um lado para outro, se benzendo e rezando alto; os anjos, eunucos de nascença e por isto, bastante efeminados, batiam as asas, espalhando purpurina e dando gritinhos, enlouquecidos porque nunca haviam presenciado uma coisa dessas; padres e freiras se ajoelharam, aos prantos.

̶  Eita mulher danada!  ̶  gritou o capeta, gargalhando sem parar.  ̶   Vamos nessa, eu te levo, isto aqui é insuportável!  ̶   Emendou.

Eu já estava pronta pra descer pelo buraco aberto no chão e ir para onde as coisas acontecem. Mas aí o velho se levantou do trono, apoiado no braço do filho, e falou com raiva:

̶  Tá bom. Mas com esse aí você não vai! Volta pra terra e que se dane, sua insubordinada! O que você acha, filho? Melhor isso do que perder pro chifrudo.

̶  Você é quem manda, papi  ̶  respondeu um amedrontado Emanuel. Ele não era besta de contrariar o velho. Uma vez já fora parar na cruz; duas, seria demais pra qualquer santo.

O pombo cego de um olho, mas narcisista como ele só, pois era considerado a eminência parda do reino, aproximou-se de mim e me deu uma bicada no braço. A dor me fez desmaiar.

Acordei na minha cama. O sol estrava pela janela e o ventilador rodava a todo vapor. Me arrumei rapidinho e me mandei pra praia. Nunca o mar me pareceu tão maravilhoso, mas um machucado no braço ardeu pra caramba em contato com a água salgada. Olhei o ferimento. Parecia feito por algo que fura. “Esquisito isto”, pensei, distraída.